Faro, 4 de Março de 2013


Caro Ministro Nuno Crato,


O meu estado de espírito obriga-me a escrever. Tenho que escolher o que detesto — ou ficar calado, que a minha consciência repugna, ou abrir a boca, o que causa mal-estar. Resulta que, não posso ficar calado, porque o silêncio é para os grandes. E eu não sou grande.

Faz mais de três meses que escrevi uma carta ao Reitor da Universidade do Algarve. Consta que a carta escandalizou meio mundo — «o Fernando Lobo passou-se. Quem é ele para afrontar os superiores hierárquicos daquela maneira? Deve estar com algum problema de saúde.» Partilho a carta consigo.

Até hoje, nem o Reitor nem ninguém na Reitoria pediu para falar comigo ou me deu uma resposta. Dos meus superiores hierárquicos não observo sinal para resolver o que quer que seja, antes pelo contrário. Sempre, depois de depois, virá o dia, mas será tarde, como sempre.

Fiz uma queixa para a Inspeção-Geral da Educação e Ciência, há pouco mais de uma semana, denunciando outros episódios que se passaram desde então. Queixo-me porque sou fraco, porque não sou grande, e porque estou com uma indigestão na alma. Partilho a queixa consigo.

Tenho diante de mim o Livro do Desassossego. Abro páginas ao acaso, leio frases ao acaso. Tudo fragmentos. Fragmentos que copio aqui e acolá, misturando palavras minhas, também aqui e acolá.

Nunca quis ser professor até ao dia em que apanhei o António Câmara numa disciplina do 4º ano da faculdade. Deparo-me com um professor simpático, descontraído, um contador de histórias, um sonhador que fazia os alunos sonhar, uma criança em ponto grande, e que ainda por cima era jogador de ténis como eu. Poucos teriam apostado num viajante vagabundo, mas ele apostou. Três anos após terminar a licenciatura, bati à porta do gabinete dele, em 1994, depois de ter estado mais de um ano a viajar pelo mundo de mochila às costas. Queria ir estudar para os EUA e pedi-lhe conselhos. Convidou-me para fazer parte do seu grupo de investigação na FCT/UNL. Oportunidades para ir para universidades americanas não iriam faltar, dizia ele. E assim foi.

Trabalhei com pessoas excepcionais e visitei algumas das melhores universidades do mundo — Illinois, Stanford, Berkeley, MIT — e em todas elas senti-me insignificante e sonhador. Em Illinois trabalhei com David Goldberg, um professor exigente, com uma capacidade crítica acutilante. Com ele aprendi da mesma forma que um aprendiz aprende com um mestre, e se mais não aprendi foi por incapacidade minha. David Goldberg era metódico, um mestre na escrita, com a arte de tornar simples o que era complexo. Ensinou-me a olhar para os problemas de forma geral e, ao mesmo tempo, a prestar atenção ao mais ínfimo dos detalhes. Como ele, talvez Rómulo de Carvalho, que nunca conheci, mas li — Ser Professor.

No laboratório de David Goldberg, trabalhei lado a lado com um colega brilhante, Georges Harik, de quem me tornei amigo. Após doutorar-se foi viver para o Silicon Valley e, um ano depois, no verão de 1998, visitei-o durante uma semana. Tinha acabado de se mudar para uma nova empresa com um nome estranho, Google, que só tinha sete pessoas para além dos dois fundadores. O Georges deu-me um artigo para a mão, «The Anatomy of a Large-Scale Hypertextual Web Search Engine», escrito pelos fundadores da empresa. Na noite seguinte fui com ele ao escritório da Google, um espaço pouco maior que uma sala de 10 metros por 10 metros, em Palo Alto. Estavam lá quatro pessoas, duas delas a jogar ping-pong. Georges apresenta-me Larry Page, com quem troco dois dedos de conversa. Disse-lhe que li o artigo dele e que tinha adorado o modelo do surfista aleatório. Larry Page agradeceu o elogio e sorriu de contente.

Terminei o doutoramento em 2000 e vim trabalhar para a Universidade do Algarve. Nem hesitei quando tive a oportunidade, vim cheio de entusiasmo. Queria ter alunos para poder fazê-los sonhar, dando-lhes as mesmas oportunidades que o António Câmara me proporcionou. No meu íntimo, tinha o sonho de ajudar o Algarve a tornar-se o Silicon Valley português.

Tornei-me professor porque queria ser estudante toda a vida, mas na Universidade do Algarve aprendi tudo o que não queria aprender. Falo a sério e tristemente; este assunto não é para alegria. Que desassossego se sinto, que desconforto se penso. Tenho gasto parte da vida que não perdi em interpretar confusamente coisa nenhuma.

Não sei onde a vida me levará, porque nada sei. Vejo os jovens a debandar do país por não terem emprego, nem esperança. E eu, que tenho emprego, tento ganhar coragem para me despedir, e também eu deixar de ter emprego, para assim ter esperança.

São horas talvez de eu fazer o único esforço de eu olhar para a minha vida. Vejo-me no meio de um deserto. Procuro explicar a mim próprio como cheguei aqui.


Fernando Lobo


P.S. – Caro Ministro, talvez goste de ler outros fragmentos que escrevi — sobre o sonho, sobre a aventura, sobre a rebeldia, sobre a escola, sobre o absurdo, sobre Matemática, sobre o acaso, sobre Picasso e a quarta dimensão.